Rosanne D'Agostino, repórter do portal UOL
Mãe de Isabella acena para manifestantes e agradece apoio no julgamento
Estava concluindo pesquisas sobre o uso perdulário dos royalties do petróleo – uma farra de políticos ladrões que impõe uma corajosa reformulação – e pretendia oferecer a você hoje o resultado dessa criteriosa investigação. (Peço replay, aliás, ao parceiro que me mandou informação sobre o vereador de Macaé que tentou inutilmente garantir o controle dos gastos. Seu e-mail sumiu).
Mas me vi agredido pelo festival de levianas boçalidades expostas com a espetacularização dos assassinos da menina Isabelle Nardoni, mais um crime abusivamente explorado por uma mídia sedenta de audiência a qualquer preço e por uma súcia de exibicionistas atrás dos tais 15 segundos de fama.
Durante toda a semana, o assassinato da menina foi o filé mignon de todos os noticiários, numa exacerbação proposital dos sentimentos de censura que violência de tal crueldade a todos acomete.
A mídia não teve recato na excitação de uma massa cada vez mais manipulável. Era tal a evidência da autoria do crime que ninguém poderia imaginar qualquer sentença diferente da condenação.
Essa decisão prevista, no entanto, precisava ser “trabalhada” para produzir os orgasmos sociais rocambolescos e envolver as massas, em diferentes escalas, como se a punição dependesse da “pressão popular” e do desempenho do promotor.
As pessoas diretamente ligadas ao caso – inclusive as que não tiveram nada a ver com a brutalidade, tornaram-se personagens centrais do folhetim, qualificadas como vilões ou heróis.
Armou-se algo absolutamente bestial, com o exibicionismo de um "fã-clube" da vítima, devidamente uniformizado, e a desfiguração da mãe da criança, cujos sentimentos não foram respeitados: ela própria se viu no centro de uma cena patética, quando soltaram fogos e gritaram triunfais o nome da filha morta na festa filmada para comemorar o placar final – 31 anos de cadeia para um e 26 para outro, por coincidência, como ressaltou um repórter dado a comparações, as idades dos assassinos.
Chocou-me a mãe à sacada do seu prédio acenando para a torcida organizada nessas 120 horas de espetáculo forense. E revoltou-me mais ainda a exibição de uma dupla de cantores, à porta do seu edifício, querendo aparecer com a apresentação em primeira mão da canção composta para a menina morta.
Da mesma forma, causou-me nojo as agressões na porta da casa do pai do assassino. Com a cobertura das câmeras de TV, um bando de falsos indignados foi lá, achando que ficaria bem na fita se também participasse do linchamento de um homem que estava tão abatido como os demais familiares da menina.
Durante os dias de julgamento, as televisões se rivalizavam na apresentação de personagens que se exibiam na porta do Fórum, alguns com cartazes ou até mesmo fantasiados de modo a chamar a atenção das câmeras.
Por que tanta espetacularidade? O mais provável é que a mídia não entendeu ainda a responsabilidade social inerente ao exercício de sua liberdade. Tudo o que se pretendia era obter mais índices de audiência frente às concorrentes. Esse pessoal medíocre e despreparado trabalha nessa direção e não tem escrúpulo a preservar.
Mas também é possível que, consciente ou não, a mídia esteja influenciando o inconsciente coletivo, acenando com a satisfação pontual do sentimento de justiça que permeia todas os seres humanos.
Tudo num ritual que ofereceu às pessoas ali a idéia de que eram figurantes e testemunhas oculares de um “julgamento histórico”, como definiu o promotor, feito astro principal da “mini-série”.
Julgamento histórico por quê? Haveria alguma possibilidade de poderosas forças ocultas influírem em favor da absolvição dos réus? Haveria quem pudesse acreditar na versão de que uma terceira pessoa teria aparecido no apartamento do casal só para pegar a garota e jogar no meio da rua?
Sinceramente, qualquer rábula teria convencido os jurados que os assassinos da menina estavam ali. Se não fosse pela lógica mais cristalina, o trabalho feito pela perícia, que se esmerou em sua mis-en-scène, oferecia um inventário técnico incontestável.
Crimes de crueldade semelhante repetem-se por este Brasil afora. Mas este envolvia personagens de classe média, semelhantes aos das novelas, e cenários exuberantes. Ele chocou por que não se imagina que gente com certo nível de cultura cometeria tais brutalidades, “típicas” da outra parte da cidade, criminalizada e marginalizada num contexto de imputações enraizadas.
Era, portanto, matéria prima ideal para esse carnaval montado, esse espetáculo vulgar que ganhou foros de uma emblemática e memorável vitória do bem contra o mal.
Não ocorre a ninguém uma avaliação dessa exibição mórbida, que afetará inevitavelmente, pela sua glamorização e ampla difusão, outras duas crianças inocentes – os filhos do casal assassino. Assim como o pai de Alexandre Nardoni foi punido pela sanha dos “indignados”, o anátema será inevitavelmente um espectro a perseguir os garotos.
Depois, essa grande mídia reage à idéia do controle social de seus atos sob impulsos meramente comerciais. E brande aos céus na defesa da sua liberdade, para que possa continuar faturando às custas das desgraças alheias.
É isso que me deixa louco, convencido, aliás, de que sou apenas um imprudente criador de cismas num mundo cada vez mais dominado por uma rendosa fábrica de idiotas.